Saiba quem é Kobra, o artista por trás de muralismos famosos em todo o mundo

Outra madrugada de insônia. O mais importante artista plástico do Brasil na atualidade pula da cama, pega o carro e sai pelas ruas de São Paulo. A cidade é sua galeria. Os edifícios e muros são suas telas. O hip-hop e o chumbo correm nas suas veias. O muralismo existe desde a era paleolítica.

Artistas pintando em grandes espaços ao ar livre estavam presentes nas civilizações clássicas da Grécia, Egito e Império Romano. Giotto, Michelangelo e Leonardo da Vinci foram muralistas. Na década de 1920, a arte floresceu no México especialmente com seu maior representante, Diego Rivera. No fim do século 20, se espalhou por Nova York na onda do hip-hop. É a arte fora da galeria, para todos e qualquer um. Kobra é um muralista. Mas o que ele faz ganhou um nome mais contemporâneo e universal: street art.

O garotinho Carlos Eduardo Fernandes Leo, nascido (em 1976) no Campo Limpo, bairro periférico de São Paulo, nunca foi bom aluno. Seus cadernos – não importa a matéria – eram só desenhos. Ao mesmo tempo, o menino não aguentava ficar em casa. Percebeu que sua arte precisava de espaço.

“Eu consigo pintar um edifício, mas não consigo pintar um capacete”

Juntou a arte e o chamado da rua participando, no fim dos anos 1980, do grupo Jabaquara Breakers. Enquanto os garotos dançavam o break, Eduardo sacava o spray e pichava onde podia e onde não podia. Queria apenas espalhar seu nome cada vez mais longe, marcando território. Seus pais não gostaram nada daquilo. “Grafiteiro” era sinônimo de vagabundo. Dava cadeia. Mas as pichações toscas evoluíram para ilustrações cada vez mais sofisticadas.

Como Carlos Eduardo era muito bom no que fazia, era chamado de “cobra”. E assim virou o Kobra. Sempre caminhando no limite da lei. “Eu já fui bem radical. Já fiz parte de um movimento de rua em que lidava com as coisas de uma forma muito agressiva. Tudo eu queria descontar na base da violência.”

Numa noite de 1990, Kobra vivia a fúria dos seus 14 anos pintando os muros de um acesso à Avenida Paulista. Uma viatura apareceu e ele foi levado com outros grafiteiros para a delegacia. Era dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo. O delegado avisou: eles iriam esperar o fim de jogo de pé. Se a Seleção perdesse, permaneceriam detidos.

“Nunca torci tanto pelo Brasil”, lembra Kobra. O Brasil ganhou. O delegado não só liberou o adolescente como reconheceu seu talento e o convidou a pintar um mural na parede da delegacia: um anjo aparando um policial ferido. (Por falar em futebol: Kobra é corintiano. Mas traumatizado. Achou que estaria bem num ônibus que levava a Gaviões da Fiel para um jogo no Pacaembu. Alguém no ônibus inventou que ele era são-paulino. Levou uma surra de alvinegros como ele. Hoje não quer saber muito de futebol. E cruza a rua quando vê uma torcida organizada.)

 

 

Na Vila Madalena, zona oeste da capital paulista, está o Beco do Grafite (ou “do Batman”). A vielinha virou ponto turístico com todas as suas paredes e muros pintados por vários nomes da street art paulistana. Duzentos metros depois do Beco do Grafite, uma parede toda fragmentada em cores é a entrada para o Studio Kobra. As paredes estão tomadas por telas que serviram de base para as pinturas gigantes. Até o frigobar tem a pintura retrô de uma menina num balanço.

Kobra aparece com seu mais de metro e 80, sempre de chapéu. Ele sorri fácil, fala baixo, se move com discrição. É o antiprima-dona. Tem a consciência dos pés no chão. “O tempo todo eu ganho e perco muita coisa. Sou convidado para um festival que quero muito ir. Na semana seguinte cancelam. Eu aprendi a lidar com esses altos e baixos, até pela minha origem. Prefiro ser grato pelas coisas que estão dando certo e não me deixar abater pelas coisas negativas.”

O artista virou referência global e enfrenta um estresse que muitos gostariam de ter. “Agora mesmo [sexta-feira] estou com um convite para um leilão em Paris na segunda. Não consegui definir se vou ou não. Estou com um trabalho em Recife, um mural enorme retratando o [músico] Luiz Gonzaga. É o maior que já fiz: 80 metros de altura. O pessoal de Paris está esperando até agora uma resposta para saber se compra a passagem. Como atrasou em Recife, pode ser que consiga passar quatro dias em Paris. Parece esnobe, mas essa vida é cansativa pra mim até por causa da minha situação de saúde.”

Eduardo Kobra tem uma fiel equipe de colaboradores na hora de pintar. Mas trafega nesse mundo de convites e contratos internacionais com um staff de apenas duas pessoas. Uma é Andressa Munin, sua mulher/secretária/produtora/assessora de imprensa. O outro é Márcio, um arquiteto que ajuda a organizar sua complexa agenda. Seu escape é um sítio a 1 800 metros de altitude no sul de Minas Gerais.

Sai de São Paulo na quinta ou sexta, volta na segunda. Lá, Kobra desliga o celular. Junto com ele vão sempre seus dois filhos caninos. “O Billy é vira-lata, a Andressa pegou numa feira de adoção. O Van Gogh eu comprei, ele é da raça bernese, que é de montanha mesmo, como no sítio. Eles passam o dia aqui no ateliê. Todos os dias eu levo para o apartamento e dormem no quarto comigo.”

Kobra espalhou seu nome pelo mundo. Ganha dinheiro para ter conforto, mas não compra parcelado, só o que pode pagar à vista.

 

 

Billy, Van Gogh e os animais de um modo geral estão no centro do universo criativo de Eduardo Kobra. Ele criou uma linha de obras chamada Greenpincel, bastante conhecida por quem circula por São Paulo. É um projeto de protesto contra crimes ambientais e especialmente a violência contra animais. São cenas chocantes, que mostram um japonês derramando o sangue de golfinhos na baía de Tanji, um peão no momento em que mata um bezerro no rodeio, um touro enfiando o chifre nas partes baixas de um toureiro. “Me revoltam esses atos de agressão. É algo que me ataca. Eu chego até a chorar quando vejo violência contra animais. Sou contra inclusive zoológico. Tem que deixar os animais livres e preservar o meio ambiente em que eles vivem.”

Kobra já pintou mais de 3 mil obras em São Paulo e outras cidades do Brasil. Mas o mundo o chama. E passou a chamar ainda mais quando ele acertou uma parceria com o francês (radicado em Los Angeles) Thierry Guetta, mais conhecido como Mister Brainwash, um dos papas da street art. Kobra espalhou seu nome muito mais do que podia imaginar quando grafitava os muros do Campo Limpo e já deixou sua assinatura em imensos painéis de cidades da França, EUA, Reino Unido, Canada, Rússia, Grécia, Itália, Suécia, Polônia e Suíça.

Boa parte de sua fama internacional se deve a um painel pintado em Nova York, reproduzindo em muitas cores uma famosa foto de Alfred Eisenstaedt: o beijo entre uma enfermeira e um marinheiro comemorando o fim da Segunda Guerra, em 1945. A cena aconteceu ali mesmo, na Times Square. Representa o espírito de outro projeto conceitual de Kobra, o Muros da Memória. Ele recria no local uma cena de sua história. Como num fenômeno quântico, o presente e o passado convivem ao mesmo tempo no mesmo espaço.

 

 

A fama de Kobra levou sua arte além das ruas e chegou aos olhos das grandes corporações internacionais. Ele seguiu os passos de Salvador Dalí e Andy Warhol e desenhou pin-ups para o rótulo de uma série especial da água Perrier. Já realizou campanhas para a Coca-Cola, Chevrolet, Ford, Nestlé, Johnny Walker, Roche, Iodice e outros gigantes. Sua presença é um evento pop, a força de uma grife internacional. Ganha dinheiro para uma vida de conforto, mas sem qualquer deslumbramento. “Não compro nada parcelado”, diz Kobra. “Só o que posso pagar. Assim, posso andar de cabeça erguida”.

A obra de Eduardo Kobra está registrada (de um jeito pouco organizado) no Instagram e no Flickr. Parece um caleidoscópio de imagens do último século. O rapper Tupac está num muro de Miami. Alfred Nobel nos observa na parede lateral de um edifício de Boras, Suécia. Kobra já retratou a escultura O Pensador, de Rodin, Oscar Niemeyer, os quatro presidentes dos EUA no Monte Rushmore, garotos dos anos 1930, os Racionais MCs, um urso polar no último bloco de gelo, uma gueixa curvada no Japão, um casal de idosos olhando placidamente para uma praia, um bonde para a Barra Funda, Adoniran Barbosa e seu Trem das Onze, remadores no rio Tietê, Mini Coopers psicodélicos, Carmen Miranda, Jimi Hendrix, o ator Mario Lago, o pianista Arthur Rubinstein, a ativista paquistanesa Malala Yousafzai, Nelson Mandela.

Seu estilo é hiper-realista, com imagens subdivididas em pequenos blocos multicoloridos, como uma colcha de retalhos. Às vezes, ele pinta em preto e branco imagens de um passado que não conheceu e, por serem tão reais, as personagens parecem revividas. Em 2015, Kobra deve produzir sua obra mais ambiciosa: recriar o passado de São Paulo em 24 grandes arcos da Avenida 23 de Maio, no centro da cidade. O que é motivo para muita ansiedade, profundamente compreensível.

Se pintasse um quadro, ele poderia aperfeiçoar a obra por um tempo num armário até ter coragem de exibi-la em público. Mas quem pinta a avenida mais movimentada de São Paulo não tem essa chance. A exposição é imediata e brutal. Não há tempo para insegurança.

 

 

Há uns 15 anos, Eduardo Kobra estava afundado na depressão. Não uma depressãozinha normal de segunda- feira, mas um desânimo desses de tirar a vontade de viver. E não era só a depressão. Era ansiedade, problemas digestivos e pulmonares, sinusite. Um quadro anormal para quem ainda não tinha chegado aos 30 anos de idade. E tinha a insônia. Ia para a cama, dormia duas, três horas e acordava. Não fazia isso por causa de surtos de criatividade.

“Adoro dormir”, deixa claro. Mas esse direito foi tirado dele. Imerso no pântano depressivo, Kobra procurou um psiquiatra. Que deu um diagnóstico superficial. Receitou 12 comprimidos tarja preta por dia. Seis ao acordar, seis à noite. Mas o festival tarja preta não melhorava em nada sua situação. O diagnóstico, descobriu depois, estava completamente errado. Quando Kobra teve a primeira chance de viajar para os Estados Unidos, realizou um exame de laboratório que matou a charada. O pintor estava sendo lentamente envenenado pelo chumbo das tintas que usava.

Por ter trabalhado tantos anos sem proteção alguma, acabou respirando substâncias tóxicas todos os dias e as misturou ao sangue. A partir da descoberta, Kobra nunca mais pintou sem a proteção de máscara e luvas. Os sintomas continuam. Melhoram num dia, pioram no outro. “A intoxicação da tinta mexe com o sistema nervoso. Dizem que o Van Gogh cortou a orelha por causa de loucura causada pela intoxicação. Portinari, se não me engano, morreu por causa disso também. Mas pintar sempre foi uma terapia e me ajudou nessas fases de depressão. O que me faz realmente mal é não poder pintar.”

A depressão, pelo menos, desapareceu. Para Kobra, o crédito vai para aquele famoso best-seller. “Sou totalmente ligado ao Evangelho”, confessa.

No escritório apertado na casa da Vila Madalena está reunido todo o alto staff da corporação Kobra: Andressa, Marcio, Van Gogh e Billy. Num quadrinho branco pendurado na parede foram marcados os compromissos para 2015. Tóquio. Estados de Colorado e Oregon nos EUA. México. A ilha de Taiti, no Pacífico. Chrastany, um subúrbio de Praga, na República Tcheca. Três compromissos separados na França. Jamaica. Dubai. Londres.

“O coração de Kobra é tão grande quanto suas pinturas”, comenta seu agente e mentor, Mister Brainwash, numa tarde fria em Los Angeles. “Ele não tem limites com relação ao que pode pintar. É um dos melhores.” A arte tirou – literalmente – o sono de Eduardo Kobra. Tudo bem. Já que não pode dormir, o artista brasileiro projeta os sonhos que não pode ter em gigantescos painéis públicos espalhados pelo mundo todo.

 

 

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Matéria retirada do site: www.huffpostbrasil.com

16 de maio de 2017
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